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Um pouco sobre a crônica

 

Designativo de um gênero específico de textos, o termo crônica mudou de sentido em sua evolução, mas nunca perdeu os vínculos com o sentido etimológico que lhe é inerente e que está em sua formação. A palavra crônica vem da palavra grega chronos que significa “tempo”, relacionando, assim, a crônica à ideia de tempo.

Dizem os estudiosos da área que a pré-história literária brasileira começa com uma crônica: a carta de Achamento do Brasil em 1500 escrita por Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, que relata ao rei D. Manuel os lances da descoberta do Brasil. Como a carta só chegaria só chegaria ao destinatário tempos depois do evento, os acontecimentos relatados no momento mesmo da descoberta já se constituíam, por si, um registro do passado. Nesse sentido Caminha comporta-se como um cronista à moda do Quinhentismo português, em que o sentido da palavra é vinculado ao registro de acontecimentos históricos. No entanto, comporta-se também como um cronista no sentido atual da palavra – o de flagrador de tempo presente – na medida em que o seu relato é contemporâneo dos acontecimentos que narra. Caminha é o cronista do cotidiano do descobrimento, ou seja, do “hoje” de 1500.

A crônica, no sentido em que o termo é comumente usado hoje para designar um texto jornalístico que aborda os mais diversos assuntos, nasceu de um filão que começou no século XIX, na França, e que se transplantou com sucesso para o Brasil. Esse filão era chamado de folhetim (do francês feuilleton). 

A crônica moderna não é só o folhetim que encurtou, mas que saiu dos rodapés de jornal, ocupando hoje qualquer uma de suas páginas, num espaço destacado, mas medido, e com um título que, geralmente, define e limita, a priori, o assunto que o cronista vai abordar. No momento em que a imprensa brasileira se afirmou, os folhetins da França nela se aclimataram, floresceram e encontraram uma feição de tal maneira própria, que fez muitos críticos contemporâneos afirmarem que a crônica é um fenômeno literário brasileiro.

Do romantismo ao Modernismo, e mesmo até nossos dias, vários escritores encontraram nos jornais e revistas um espaço de aperfeiçoamento e profissionalização, além de íntima e gratificante comunicação com o público.

Equilibrista do cotidiano, o cronista faz o que quer. De certa maneira, poderíamos dizer que é um ilusionista, que se mete onde não é chamado e escreve sobre o que é atribuição dos outros. Talvez até seja, mas a sua graça, seu charme está justamente nisso. É um factótum (faz tudo) literário: especialista em tudo e em nada, tem nas linhas contadas de um jornal uma faca de dois gumes, pois, se às vezes faz da realidade transcendência, num texto que ficará registrado para sempre, corre também o risco de escrever matéria menor, na obrigação de preencher um espaço, por contrato, haja o que houver. Então é paradoxalmente dono e prisioneiro da sua liberdade. Livre para escrever o que quiser e escravo de um papel a ser preenchido. E dessa dualidade, dessa tensão é que emanam os grandes textos, não mais puramente jornalísticos mas da melhor qualidade literária.

Certo é que a crônica existe para o mísero mortal, ou seja, para nós, homens menores, isso é bom, pois desperta a humanidade que há em nós e que as misérias do mundo tentam adormecer, matar talvez. O leitor se dignifica, ao perceber, nas grandes crônicas, o pequeno se eternizar, o prosaico transcender. 

 

Fragmento extraído do livro Crônica: História, Teoria e Prática

      Flora Bender e Ilka Laurito, Scipione, 1.993.

 

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